da Folha Online
Ao lançar "Casa-Grande & Senzala", seu clássico ensaio de interpretação do Brasil, em 1933, Gilberto Freyre (1900-87) abriu o confronto com as teorias racistas de intérpretes consagrados do país. As idéias de valorização do negro e da cultura afro-brasileira defendidas no livro chocavam-se com as concepções raciais e os determinismos climáticos adotados por Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Viana e outros intelectuais da época.
A informação é do livro "Folha Explica - Casa-Grande e Senzala", da Publifolha. O volume, assinado por Roberto Ventura, professor de teoria literária, abre caminhos para a leitura do ensaio Casa-Grande & Senzala, além de abordar a trajetória controversa de Freyre.
Leia abaixo trecho de "Folha Explica - Casa-Grande e Senzala".
*
A GUERRA DAS RAÇAS
(...)
Casa-Grande & Senzala teve o impacto de um manifesto cultural e político por sua contundente crítica ao racismo e pelo enfoque inovador da escravidão, da monocultura e do latifúndio, sob a ótica da cultura e da economia. Formulava, já no prefácio, sua ruptura com as teorias racistas e relatava sua conversão quase mística à abordagem culturalista, ensinada por Franz Boas no departamento de antropologia de Columbia. O jovem Freyre transformava o anti-racismo de Boas em profissão de fé, que iria substituir seu protestantismo dos tempos de aluno do Colégio Americano Gilreath no Recife ou de pregador batista nos bairros pobres da cidade, e ainda enquanto estudante com bolsa de estudos da Igreja protestante na Universidade de Baylor, em Waco, Texas.
Conta assim, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, a profunda impressão que lhe causaram os ensinamentos do mestre Boas:
- Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor - separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio.
(...)
O passado escravocrata brasileiro deixara como saldo a pesada herança da monocultura e do latifúndio, responsáveis pelas deficiências alimentares da subnutrida população nacional. Freyre propôs portanto a superação da idéia de raça e a sua substituição por um enfoque centrado na economia e na cultura, no que se aproximava de antropólogos brasileiros, como Artur Ramos e Roquete-Pinto, e de escritores latino-americanos, como o cubano Fernando Ortiz, o mexicano José Vasconcelos e os peruanos José Carlos Mariátegui e José Maria Arguedas.
Manteve porém, em uma das muitas contradições de seu pensamento, um viés evolucionista, ao tomar a raça como sinônimo de caráter e cultura e acreditar na existência de povos mais ou menos adiantados, o que entrava em contradição com a pretendida superação dos modelos biológicos e raciais. Afirmou a existência de culturas superiores, como os africanos maometanos trazidos da África, adeptos de uma religião monoteísta, cuja presença na colônia portuguesa teve uma função civilizadora. Proclamou a superioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco no que se refere ao trabalho de metais, à criação de gado, à alimentação e à culinária.
Essa mistura peculiar de culturalismo e evolucionismo se explica, em parte, pela admiração que tinha, na juventude, por autores positivistas, como o francês Hippolyte Taine, para quem a história era determinada por meio, raça e momento, o filósofo Auguste Comte, que pregava a existência de fases lineares do desenvolvimento humano e social, e sobretudo o inglês Herbert Spencer, que concebia o homem e a sociedade como regidos pelo princípio da evolução, que caminharia sempre do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo. Bebendo nas mesmas fontes de intérpretes do Brasil como Sílvio Romero e Euclides da Cunha, cujas idéias racistas iria rejeitar, Freyre deu aos 16 anos sua primeira conferência, em Paraíba (atual João Pessoa), sobre "Spencer e o Problema da Educação no Brasil".
(...)
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